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Por que os problemas de mobilidade urbana atingem de diferentes maneiras os diferentes corpos?
Entrevista pingue-pongue com Brenda Carlos

O direito ao transporte reflete na concretização do direito à cidade e é uma necessidade inerente ao exercício da cidadania. É o direito ao transporte que permite o acesso dos indivíduos aos equipamentos públicos, assim como a integração de moradores de diversas regiões da cidade, seja em ambientes públicos ou privados. Cabe ao Estado criar políticas públicas de mobilidade urbana efetivas, assim como destinar um orçamento específico e previsto por lei para assegurar esse direito básico à população.

No entanto, aquilo que está escrito na Constituição está muito distante da realidade. A malha pública de transporte e as políticas públicas de mobilidade urbana não têm como foco o recorte da população de mais precisa delas: os menos favorecidos economicamente. Essa parcela da população é invisibilizada em diversas instâncias, mas, principalmente, no acesso aos espaços públicos e privados. E a limitação deste acesso começa no que tange ao acesso à cidade. Em meio a este processo, a cidade se comporta de maneira mais hostil com determinados corpos. Para conversar sobre o assunto, o Cidade Para Todes convidou a professora universitária Brenda Carlos. 

Brenda é professora da graduação em Letras na UFRPE, do Programa de Pós Graduação em Estudos da Linguagem na UFRPE e do  Programa de Pós-Graduação em Letras , há alguns anos, transformou o interesse em Sociologia do Corpo em em disciplinas que ministra nas turmas de mestrado. Desde o início deste ano, se dedica, também, à pesquisa científica do tema. 

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CAMILA - Em A Sociologia do Corpo, Le Breton afirma que “corpo é a interface entre o social e o individual, a natureza e a cultura, o psicológico e o simbólico”. Partindo dessa compreensão de corpo, como e porque o corpo pode ser considerado um fator determinante do lugar que nos é designado na escala social e dos lugares que somos autorizados a ocupar?

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BRENDA - Tem uma relação muito forte  do corpo com o espaço em que você circula. Eu tenho trabalhado muito com essa relação entre corpo e espaço. A questão do corpo, para mim, surgiu a partir dos trajetos dentro da cidade e isso tem a ver com os espaços que se tornam invisíveis por causa dos discursos do medo. Isso começou muito com o meu confronto com o Recife em uma época em que eu morei na Cidade do México, e lá existia uma repetição muito grande do “você não pode circular por aqui, você não pode pegar metrô nesse horário…”. Isso sempre me incomodou muito, porque eu tava vivendo uma fase de andar a pé. Eu tinha vendido o meu carro, e tava andando muito a pé, de ônibus e virou uma espécie de militância andar de ônibus e fazer os trajetos dentro do que era possível fazer, inclusive, caminhando pela cidade. A parte do caminhar tem um histórico da infância, minha mãe sempre caminhou muito na cidade, a gente sempre teve um domínio muito bom desse espaço. Então passei a ter noção do discurso da cidade e desses espaços do medo, e isso me fez começar a pensar justamente nos locais da cidade que são invisíveis. Uma das coisas de que eu fui me dando conta, foi que existe uma relação de continuidade entre o corpo, a cidade; e o mapeamento que a gente faz da cidade e o mapeamento que a gente faz do corpo. Muitas vezes, os locais invisibilizados da cidade são os locais do que eu chamo, por falta de uma nomenclatura melhor, dos corpos disformes ou invisíveis. São corpos que não estão de acordo com a norma, por vários motivos e vão ganhando o status de invisíveis. Esse status de invisível pode ser representado de diversas formas, então você tem - se pensar nos espaços invisíveis da cidade - as favelas e os corpos que são não socialmente ou economicamente adequados dentro disso. Se a gente pensa nas instituições de saúde, a gente tem os corpos doentes, que não estão adequados para a circulação dentro do que é o esquema da cidade. Tem essa relação direta com a cidade e tem a exclusão social que pode ter a ver com a doença, uma certa deficiência. Pode ter a ver com os fatores econômicos. O corpo invisível que ocupa a favela é visível e é deslocado quando está em determinada situação da cidade e passa a ser visto como uma espécie de corpo perigoso por ser uma deformidade dentro desse local. Uma outra correlação num aspecto que é muito caro para mim e pode até parecer menos político num sentido restrito tem a ver com as conformidades específicas que o corpo precisa ter socialmente dentro do que são os modelos de beleza e saúde. Hoje não existe uma desarticulação entre beleza e saúde e existe um grande discurso com relação a isso e aí existe um arsenal pseudomédico que desenquadra corpos que em tese seriam socialmente aceitos porque dentro da sociedade eles estão localizados dentro de um espaço da classe média e tal, mas eles também são disformes nesse sentido de que eles não cumprem a expectativa do que se imagina que é saúde. Ele não é um corpo doente como o de alguém que tem uma paralisia, mas ele é percebido como um corpo doente porque ele é percebido como um corpo que não cumpre a expectativa que você tem das normas de saúde, que estão muito vinculadas com as normas de beleza. Você diz que um corpo é saudável se você malha trocentas horas, come whey protein… eu tenho muito problema com isso, porque eu digo “bicho, a gente come comida. Se você tá comendo partículas de coisas, tem um problema com você e não comigo”. E aí eu acho que isso cria também um outro discurso porque é uma articulação de corpo que tem a ver com uma espécie de intersecção. Em tese, ele está num espaço que socialmente é visibilizado e a gente pode ver esse tipo de corpo, mas, ao mesmo tempo, a gente pode ver como doente porque ele não cumpre a normativa de um padrão de saúde e de beleza. E é lógico que a isso se agrega você ter esse corpo estando no local da favela. Isso vai retroalimentar todo um discurso. Se você pensar num determinado homem ou numa determinada mulher que está na favela e que está com sobrepeso. Isso está muito articulado com as políticas de alimentação porque tem a ver com a forma como se pode consumir de acordo com o dinheiro que se recebe, com o status que você tem com relação ao que você compra. A comida industrializada tem um status. Essa Pessoa que já é um corpo socialmente desarticulado, que já é invisibilizada pelo lugar social e econômico que ocupa, começa a reproduzir um comportamento de desarticulação com o padrão de sáude e beleza, e entrar numa intersecção de ser duplamente desarticulado. Quando a gente começa a entrar nesse campo, muitos assuntos vão desabrochando. 

 

CAMILA -  A condição social se configura como um produto direto do corpo?

 

BRENDA - Eu não acredito em consequências diretas. Acho que a gente estabelece relações e existe uma relação entre o corpo que eu tenho e o corpo que eu pareço ter. “Tenho uma aparência de” ou “me comporto como”. A sociedade reproduz muito isso quando a gente ouve que “o negro que embranqueceu por conta do dinheiro ou da fama, o gordo que é bonito, o pobre que virou galã”… nenhuma dessas situações é estanque, mas são negociáveis. A forma como o corpo se coloca dentro da sociedade tem um impacto na forma como isso resvala em você. E tem a ver tanto com aquilo que você tem quanto com como você coloca esse corpo para funcionar dentro da sociedade. Mas vale salientar que o corpo que você tem é fruto de uma interação com um sem-número de coisas. Tem a ver com a forma como sua família se relaciona com isso, tem a ver com os enfrentamentos que você teve. Essa relação de causa e consequência é complicada, porque ela exclui um passado que constitui esse corpo e as percepções que você vai adquirindo ao longo da vida e que tem a ver com determinados padrões em que você vai se enquadrando. Então eu me enquadro mais num determinado padrão fora do eixo, ou eu me enquadro repetindo a norma porque para mim é mais fácil seguir essa norma que tá no padrão. Todos os enquadramentos vão reivindicar coisas anteriores. Ninguém inventa a roda, então esse corpo, na verdade, tem uma relação direta com a forma como você se coloca ou com como esse corpo é visto quando você traduz esse corpo para o outro ler e a forma como ele é percebido. Eu sempre conto uma anedota: normalmente, nos semestres de aula, eu me visto do jeito que eu quero. Sou concursada, obviamente eu não vou dar aula de pijama, mas eu não tenho muita preocupação a respeito do tipo de vestimenta que eu vou (uma calça jeans, um tênis…), mas toda vez que me chamam para dar um curso de curta duração, eu organizo o guarda-roupa. Isso não significa que eu vou estar perua, mas significa que eu sei que a forma como eu me apresento em sala de aula, principalmente em um curso de curta duração, de 5 ou 6 dias, para uma turma que nunca me viu e não vai ter tempo de se acostumar comigo ao longo do semestre. Isso tem a ver com como eu apresento o meu corpo. Com como eu visto ele para ser visto pelo outro.

 

CAMILA - O corpo pode ser considerado como suporte das relações de poder e de controle social? 

 

BRENDA - Sim. Tem um pouco a ver com o que eu vinha comentando antes. Essas estruturações do “corpo que pode”. O “corpo que pode circular em determinada área”. A gente tem uma estrutura social muito de castas e a gente não se dá conta. A gente acha que o mundo é pequeno e, na verdade, o nosso espaço de circulação é pequeno. Quando a gente, às vezes, diz “ah, Recife é um ovo, a gente encontra todo mundo”, não! Você encontra todo mundo que pertence à mesma classe, que tem um determinado posicionamento social e ideológico parecido com o seu, porque você não vê outras pessoas, mas elas existem. Isso tem a ver com comportamento e isso tem a ver com essa posição também do corpo que circula porque tem taxativas mais claras, ou seja, determinados corpos de determinadas formas não vão ser autorizados a circular, por exemplo, em determinadas lojas. Se você vê um mendigo dentro de um shopping, ele uma hora vai ser retirado pelo segurança. Por qualquer desculpa. Na real, o espaço do shopping é público. E aí você retira ele de um espaço público, mas porque aquele corpo não está autorizado a circular daquele jeito. Isso é o caso mais dramático, talvez, mas aí tem a forma como eu não circulo em determinado bar porque eu não me sinto à vontade em, da forma que eu sou e como eu me visto, estar lá. Existe uma imposição, uma padronização e isso vai das coisas mínimas. Isso tem a ver com todos os espaços. Existe uma experiência do corpo que faz as pessoas que não se identificam com aquele padrão não quererem estar ali. Essa lógica impulsiona vários locais. Se você pensa, por exemplo, em termos de universidade pública, é um espaço público, mas que vive cerceado também e onde determinadas pessoas não podem circular, então você vai criando espaços em que você permite ou não a circulação, mas aquilo ali é uma verba pública. E aí você começa a se perguntar porque há esse cerceamento. Tem a ver com a segurança que o Estado não dá dentro daquele espaço e aí você toma uma rédea de resolver aquilo e, ao tomar essa rédea, você repete também um padrão de eliminação dessa circulação. Se você pensa esses temas de catraca eletrônica ou sistemas de senhas para entrar em determinados centros, como acontece no CTG. A Rural fecha as portas durante o recesso. É um absurdo, por um lado, porque você proíbe qualquer corpo que faz parte da comunidade acadêmica de circular lá dentro. Ao mesmo tempo, tem uma dinâmica que explica isso. Existe uma relação de poder, mas não é só no sentido de dizer que a gente reproduz poderes que são negativos, é porque a gente interage  com coisas e reaciona. Pra mim, um poder clássico de eliminação do corpo tem a ver com o que eu chamo de “pequeno poder do funcionário da alfândega”. Esse impedimento, esse barrar o corpo que circula. E, às vezes, é uma pessoa que não tem nenhum poder, mas ela tem o poder daquilo e ela exerce esse pequeno poder, muitas vezes, num sentido muito negativo. Acho que tem muito a ver com exercício político, com exercício do que é permitido, o que determinada pessoa pode falar ou não pode falar. O fato de existir um cerceamento que é passado como causas subjetivas que são externadas como discursos oficiais da verdade… aí é onde a gente começa a ter problemas. E aí a gente começa a negociar o direito de poder circular ou não. Quando você anda no hospital… minha mãe teve câncer ano passado, fez o tratamento no Hospital do Câncer. E isso pra mim foi bem visual. Acho que você vê uma dinâmica muito séria com relação a essas autorizações e de como você coloca o seu corpo, porque minha mãe foi professora universitária, eu sou professora universitária, minha irmã não concluiu, mas cursou jornalismo e tem toda uma formação, morou fora… todas nós temos um espectro de formação. E minha prima trabalhava lá. A gente sabia onde circular, eu sabia o tipo de consulta que minha mãe ia, se ela não recebia aquilo, eu falava com a enfermeira porque eu sabia como que colocar enquanto corpo - e, por corpo, eu tô querendo dizer corpo, voz e toda uma continuidade - pra requisitar aquilo porque eu sabia que eu tinha direito e que fazia parte do tratamento dela. Mas a quantidade de outras pessoas que não sabiam disso… às vezes essa invisibilização tem a ver com a própria capacidade de saber que pode pedir aquela coisa. A quantidade de gente que eu vi que não recebeu o remédio completo e não tinha coragem de falar com a enfermeira… tem essa coisa do invisível e do corpo doente que se sente deslocado que funciona ainda mais dentro do hospital porque você se sente como se estivesse pedindo um favor quando, na verdade aquele hospital é uma benesse, mas ele é um direito também. E você percebe quando o seu corpo está exercendo um direito. Esse corpo que sabe que pode pedir é diferente do que acha que tá pedindo um favor. 

 

CAMILA - O planejamento de mobilidade urbana no Recife não prioriza o transporte público, a ciclomobilidade e a mobilidade a pé. Aquilo que deveria ser um direito, se tornou uma mercadoria. O Estado ignora a necessidade de políticas públicas que facilitem o deslocamento e o acesso das pessoas a diversos pontos da cidade através de diferentes meios de transporte de maneira segura e digna. O atual modelo de mobilidade urbana no país prejudica de maneira direta as populações de baixa renda. Como é possível explicar essa condição sob a perspectiva das lógicas sociais e culturais do corpo?

 

BRENDA - A mobilidade aqui é caótica. E ela tem muito a ver com classe também. Porque, se você pega as linhas de circulação de determinados bairros, elas são melhores servidas, os ônibus são mais limpos, você tem ônibus com mais acessos ou com menos acessos, aqui (no bairro onde Brenda mora) é bem uma zona clara com isso, porque eu costumo dizer que uma Casa Amarela esquizofrênica: aquela que acha que é Casa Forte. Mas a gente tá bem no limite da Casa Amarela real, que é ali bem do outro lado da rua. Mas se você olhar o tipo de ônibus que circula perto do Mercado de Casa Amarela e o tipo de ônibus que passa mais para o lado de Casa Forte, é completamente diferente. E, às vezes, até o destino. Pega ali na Rua da Harmonia, mas o destino é o centro. Vai servir a um bocado de estudantes. É muito diferente. Tem a ver com os bairros e tem a ver com os horários também. Por exemplo, em termos de ser bem servido, a Caxangá, a Iputinga é uma área que, em geral é muito bem servida de ônibus porque, em geral, é um dos poucos bairros em que você tem ônibus saindo de um bairro e indo para o outro, e não para o centro. E também tem muito estudante indo para a Federal. Falando da Várzea, especificamente, tem o CDU/Caxangá - Boa Viagem que tem uma lógica muito “engraçada”, porque ele leva públicos muito diferentes a depender do horário. Se você pegar esse ônibus durante a semana às 4h30 da manhã,  saindo da Várzea, é o ônibus dos porteiros e das empregadas domésticas que trabalham em Boa Viagem. É um negócio impressionante, porque ele vai enchendo, enchendo, enchendo… quando chega em Boa Viagem, as pessoas começam a descer. E você vê gente com uniforme e tudo mais. Se você pegar ele no mesmo local às 7h30/8h da manhã, é o ônibus dos vendedores de shopping e você vê todo mundo com as fardas das lojas. Se você pega ele na direção contrária de 7h da manhã, normalmente, são os alunos da Federal que, pela primeira vez, estão pegando ônibus, que estão saindo de Boa Viagem. Então ele tem uma dinâmica de servir que é diferente porque ele serve um quantitativo de gente muito maior em dinâmicas diferentes e você consegue ver de uma determinada forma a população toda usando ele. E ele é um ônibus de divertimento. Se você pega ele no fim de semana, de manhã cedo, é todo mundo indo para a praia. E, no final da tarde, é todo mundo bêbado e com cheiro de sal no ônibus. Ele tem um funcionamento, pra mim, do que deveria ser, de uma maneira geral, o transporte público. Os terminais integrados da Macaxeira e da Joana Bezerra são a estrutura do caos. Eu chego nesses terminais e não tem organização de fila, as coisas são de uma selvageria… e por mais que se forme fila, as pessoas começam a furar. É uma vivência violenta demais do que é a sociedade da gente. É um retrato do que é a gente: do passar por cima do outro, de você ver gente caindo, da quantidade de roubos que tem dentro desses terminais. As integrações normalmente estão localizadas em pontos ermos da cidade, pontos que já são invisíveis, sair de lá e pedir ajuda já é meio impossível. E elas já são colocadas nesses espaços de maneira proposital, porque ninguém pega um espaço que é bonito e comercialmente viável na cidade para transformar em uma área pública. A área pública sempre vai ser colocada em uma espécie de resto. Se é área pública, então vamos não gastar dinheiro com isso. Por que é que eu vou fazer um terminal de integração aqui, se eu posso arrendar essa terra para um comércio e ganhar mais com isso? Ou vender esse terreno? O transporte público aqui, para mim, é uma violência constante. Eu ando muito de ônibus. Nos últimos anos até tenho andado menos, mas tem muito isso: o meu direito e a minha forma de andar de ônibus é uma vontade. Como meus horários são diferenciados, isso me deixa escolher em que momento eu vou pegar o ônibus. E tem a ver com uma posição política. Eu acho que a gente precisa andar de ônibus. Isso faz com que eu encare as coisas de uma maneira diferente, mas quando você entra na vivência de uma pessoa que tem obrigação de pegar esses transportes, é uma violência física constante. E física em diversos níveis. A gente tá falando de assaltos, de assédio, da violência efetiva do que é andar num ônibus cheio, que é ser agredido e ser obrigado a agredir o outro. E essa é uma lógica que você acaba impingindo num sistema de tensão da violência, para que o seu sobreviva, você precisa, às vezes, violentar o outro. E isso fica muito claro, fisicamente falando, quando você está num ônibus lotado e precisa descer daqui a duas paradas. Você só vai passar, se sair empurrando as pessoas. Ao mesmo tempo em que tem a violência do Estado que nos dá essas circunstâncias e tem uma violência, também, que você acaba perpetuando a partir das formas como você frequenta isso e que essas pessoas não vão perceber nunca porque o que elas aprenderam foi um outro tipo de vivência. Essas “pequenas” ausências de sociabilidade têm a ver também com o sistema de cansaço e reprodução da violência genérica. Uma pessoa que sai para trabalhar e gasta 2/3h da vida dela de locomoção, é claro que ela vai ter uma relação violenta com meios de transporte. Engraçado é que a ideia nas grandes cidades é uma ideia de circulação livre e aí o que a gente vê, principalmente nessas metrópoles são vias entupidas tanto de meios de transporte, quanto de gente dentro desses meios de transporte. 

 

CAMILA - Por que os problemas ligados à mobilidade urbana no Brasil afetam de maneiras diferentes os diferentes corpos? (Lembrando que a questão da segurança está inclusa nessa problemática) Que corpos são os mais prejudicados em meio a esse processo?

 

BRENDA - A questão econômica é um dos primeiros elementos que podem fazer com que o corpo consiga, mesmo nas dificuldades, circular melhor. Se eu consigo arcar com a mobilidade de táxi, se eu consigo selecionar os lugares para onde eu quero ir porque eu não me importo com o valor desse lugar e aí esse lugar me dá mais mobilidade, esse impacto econômico é o mais claro de todos. 

Eu acho que essa é uma linha de frente, porque é aquela história: um casal lésbico de determinada extração social, por exemplo, de classe média, mesmo que enfrente dificuldades, o nível de dificuldade é “menor”. Eu não gosto dessa coisa de menor, mas existe um “saber meu direito” que me coloca em local de “maior segurança”, ou seja, eu sei o que eu posso reivindicar em relação a isso, que não é uma segurança de dizer “estou protegida e nada vai me acontecer”, é uma segurança de ter um terreno, pelo menos. Eu acho que você escolhe militar, você escolhe estar na linha. Porque se você não fizer, você continua vivendo no medo. Tem uma coisa de entender que se você não se coloca no lugar, você não entende essas possibilidades e nem os locais em que é possível você circular. Não circular de todo não resolve a situação. Eu comecei a identificar que muito desse discurso do medo tem a ver com a reprodução, que beira o absurdo.

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CAMILA - Já existem alternativas para os problemas de mobilidade urbana ao redor do mundo. Você acredita que os problemas de mobilidade urbana no Brasil são mais políticos que técnicos?

 

BRENDA - Acho. Acho que a gente tenta reproduzir questões de uma ideia de modernidade que tem a ver com espaços de conquista de locais sociais, mas a gente não quer pagar as consequências, o que significa que a gente acaba não fazendo isso, efetivamente.Abrir o espaço para maior mobilidade significa que as pessoas vão ter que circular menos de carro. Significa que a gente precisa ter um investimento no transporte público. Tem uma idolatria. A gente fala “ah, tal lugar tem tal coisa”, mas na hora de discutir isso para o contexto local, as pessoas não estão dispostas a abrir mão do que é delas, porque você precisa abrir mão de um sem-número de coisas para que essa mobilidade possa existir. A diminuição do uso de carro é uma delas. A implantação de ciclovias reais, porque aqui no Recife a gente tem ciclovias de fim de semana para a classe média. Eu, sinceramente, nunca vi ciclovia para os funcionários ali da fábrica de Brennand, que saem em direção à UR 07 ou voltando para a Várzea. Eu nunca vi ciclovia para o pessoal que vem trabalhar de bicicleta aqui no Mercado de Casa Amarela. As ciclovias daqui são artérias descontínuas que levam de nenhum lugar para coisa nenhuma, feito o metrô da gente. O metrô ainda serve a determinadas pessoas, ainda que seja muito restrito. Mas as ciclovias, além de tudo, são inúteis: começam no nada e terminam no nada. Eu não vejo ciclovia para quem usa a bicicleta como um meio de transporte real. Tem uma questão política muito séria, mas não é uma questão política só no sentido de “ah, o Brasil tem uma dificuldade de lidar com isso, o Recife tem uma dificuldade de lidar com isso”, mas de uma dificuldade muito grande de encarar aquilo que foi proposto pra a gente como moderno e se colocar inserido nos grandes avanços sem pensar no que é localmente importante. Acho que a gente vai continuar reproduzindo mal ajambradamente essa ideia porque o que a gente reproduz é o sistema econômico. A gente quer os lucros, mas não quer pagar os encargos sociais. Cada vez que uma coisa é tirada da gente, ela é sentida como algo que é usurpado e não como algo que é favorável ao bem comum. Isso faz parte da estrutura do sistema, globalmente, ou seja, é a gente vivendo nessas condições que favorece determinadas sociedades e faz com que elas tenham um determinado acesso a zonas de maior igualdade social e econômica. Quando eu digo que existe um certo teor de raiva para mim quanto a essa segurança que eu sinto quando tô circulando em outros países é porque eu sei que essa segurança deles é paga com a minha insegurança daqui. Muito claramente. Quando eu acho que é uma coisa política, eu não tô localizando só num sistema, no sistema político brasileiro deficiente, mas dentro de todo um sistema mundial em que você se aproveita de determinadas regiões, vendendo a imagem de que existe um progresso igual ao do país X e a gente compra esse progresso, mas esse progresso deles é pago com uma série de coisas da gente porque, por exemplo, esse nível de segurança e de conquistas sociais que se tem, normalmente, é pago com produtos daqui. Até porque tem muitos produtos que o Brasil exporta que são vendidos pelo mesmo preço daqui em outros países. E se isso acontece, é porque tem uma exploração de mão de obra de trabalho. Se você tira parte de uma faixa de circulação de carros para colocar uma ciclovia, todo mundo vai reclamar, embora qualquer pessoa daqui que tiver ido à Holanda, vai ter achado lindo o movimento das bicicletas na Holanda. Existe a reprodução de uma ideia que nunca é aplicável porque aqui ela é sentida como uma usurpação, e isso foi estabelecido historicamente. 

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