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Cidade é trabalho passado, mas também é trabalho presente
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Rudrigo Rafael é mestre e graduado em serviço social, e começou na militância no processo de formação profissional, o qual estagiou na ONG Habitat para Humanidade Brasil. Em seguida, trabalhou em um projeto de intervenção habitacional em um projeto no bairro da mustardinha e, também, no município de Feira Nova, atuando com mulheres raspadeiras de mandioca que viviam em extrema vulnerabilidade (recebiam, na época, cerca de 15 reais por tonelada de mandioca raspada. A partir deste projeto, ele compreendeu que “produzir moradia para aquelas mulheres seria produzir uma parcela de cidade intencionada, e esse processo de produção está perpetuado em nosso cotidiano, mas muitas vezes não percebemos”. sempre presente na militância social, Rudrigo é, atualmente, coordenador do Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST).  

 

Os problemas sociais do Brasil estão cada vez mais relacionados à construção histórica do país. Desde a colonização brasileira, as cidades vêm crescendo a partir de uma política urbana de interesse local, segregando as camadas sociais. Hoje, a exclusão urbanística é representada pela ocupação ilegal do solo, que pode ser denominada de cidade “formal” ou “legal”. Essa área de uma cidade é composta por tudo aquilo que não cabe no contexto de mercado imobiliário e, consequentemente, as favelas são partes da sociedade excluídas do procedimento da maior agência de pesquisa de dados, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e, ainda, estão fora das pautas governamentais. Caracterizando a crescente modernização excludente do Brasil, ligadas aos problemas de mobilidade urbana intrínsecas nos municípios brasileiros, incluindo a cidade do Recife.   

 

EDUARDA: EXISTE UMA HERANÇA HISTÓRICA QUE AFETA A DESIGUALDADE SOCIAL?

 

RUDRIGO: O fato da gente viver na capital mais desigual do brasil não é à toa. Recife não rompeu ainda com a estrutura colonial e patriarcal que marcou a sua criação. A cidade tem um processo de formação muito interessante… a primeira capital de Pernambuco foi Olinda, e não Recife, e o que determina a constituição de Recife como capital é a invasão holandesa, quando eles chegaram e disseram que não reconhecia um modelo de ocupação em área acidentada e de morro, como era Olinda… “A gente reconhece a parte de área alagada”, que era Recife, e simplesmente decidiram se consolidar aqui. Constituiu-se o primeiro núcleo urbano no bairro do recife (o que a gente convencionou se chamar bairro do recife). E por exemplo, no processo de consolidação de Sérgio Buarque e Josué de Castro, eles vão exaltar esse núcleo urbano em relação a infraestrutura; comparando a Salvador e Buenos Aires a gente tinha um dos sistemas de estrutura mais avançado das américas. Se os Holandeses tivessem continuado seria diferente? Seria invasão do mesmo jeito. Mas essas disputas  são o que no fundo caracterizam a cidade do Recife. É preciso entender a desigualdade da cidade como um elemento de grande riquesa que possuímos a partir de um ponto econômico, social, político, cultural etc. Mas temos um processo de apropriação e disputa que no fim das contas não gera uma sociedade democrática e pautada pelos valores públicos, e isso tem um passado colonial e tem um presente de um processo de produção capitalista de espaço muito cruel. Se formos pensar que o metro quadrado mais cidade é no bairro do pina, onde no mesmo lugar temos palafitas no Bode, empresarial da Moura Dubeux, o JCPM e o Shopping RioMar na mesma localidade… isso é o Recife. 

 

Brasília Teimosa: de dia a polícia ia tirar o povo que ocupava a área e de noite o povo reconstruia. Essa teimosia de bairros como Entra Apulso, que muitas vezes naturalizamos o nome dos bairros mas tem uma identidade muito forte da constituição desses territórios. Então a gente tem uma cidade que é sintoma de um processo de ocupação. Hoje, você encontra uma palafita que estaria totalmente identificada com a imagem do século 19, mas do outro lado tem uma cidade que está no século 21.

 

EDUARDA: E COMO ESSA DESIGUALDADE PODE SER ANALISADA?

 

RUDRIGO: O processo de acesso à serviços, de acessos a riqueza urbana que a gente tem não é socializado igualmente. existem ilhas de pobreza e ilhas de riqueza que convivem dentro de um mesmo território. Acho que isso é fruto de uma disputa de resistência. Se não tivessem zonas de interesse especiais que foram zonas de inovações legais, criadas na década de 80, você não teria uma cidade desigual, você teria uma cidade rica. Então você vai pegar o mapa racial do recife e vai ver que a população negra ocupa as áreas mais pobres e elas estão diretamente ligadas às 72 zonas especiais de interesse social da cidade do Recife, e isso ainda existe porque existe muita resistência. Então acho importante pensar a desigualdade a partir dessa perspectiva. Se fosse só uma cidade pobre não seria desigual, e sim uma cidade igualmente pobre. O que existe é uma forte apropriação de grupos sociais que se perpetuam ao longo do tempo, como a família Brennand e os grandes proprietários de terra… O familismo ainda é uma tradição muito forte e que de alguma forma detém o monopólio dos serviços de transporte, tudo isso determina o que a gente tem quanto cidade.


 

EDUARDA: O QUE SE PODE DEFINIR COMO CIDADE LEGAL?

 

RUDRIGO: Isso também é uma disputa. Uma das características das cidades não só brasileiras, mas latino-americanas é a questão da informalidade. Recife teve parte do seu chão construído pela população. Se você for pro bairro do coque ou da mustardinha, e perguntar como as primeiras famílias vieram parar naquele lugar, eles vão dizer que aterraram com metralha e construíram a casa em cima. E no fim das contas, aquele chão construído por aquelas famílias tem outro dono, porque a cidade foi loteada em função da demarcação que existia nos engenhos. Grande parte das cidades se constituíram a partir dessa dinâmica. Existe um chão que é habitado por quase um milhão e 700 mil pessoas, mas que no fim das contas quem são os donos da terra não são as mesmas pessoas. A formalidade e a legalidade tem um caráter muito excludente na cidade do Recife.

 

 A primeira legislação que completa um século agora em 2019, fala sobre zoneamento urbano, afirmando que não é permitido habitação precária na área central no Recife. Então a lei praticamente dizia que pobre não pode morar no centro da cidade, e isso desdobrou um conjunto de políticas públicas. Como por exemplo a liga social com os mocambos, que a partir do argumento da saúde pública tentou eliminar a forma de moradia hegemônica das populações de baixa renda do recife, que limpou a área central, da população de baixa renda. Quem foi um grande implementador dessas políticas foi Agamenon Magalhães, que tem como homenagem uma das principais avenidas da cidade. 

 

A marca da desigualdade ela está praticamente em todos os lugares, e essa ideia de legalidade e formalidade também. A primeira vez que a legislação urbana do Recife reconhece a função social da propriedade e o direito à moradia como valores legais. Antes era o direito a propriedade que determinava o acesso a cidade, e no fim das contas isso influencia a constituição de 88 e uma série de constituições pelo Brasil e faz com que a legislação urbana no brasil seja uma referência para vários países do mundo. 

 

(19’10) EDUARDA: COMO A CIDADE FORMAL INFLUENCIA NOS TRANSPORTES PÚBLICOS?

 

RUDRIGO: Primeiro existe uma disputa de concepção sobre o que é transporte público. Mobilidade virou um direito muito recente de direito constitucional - decretada em janeiro de 2012. É importante pensar na mobilidade a partir de que é um direito, e discutir modelos contra hegemônicos de transporte que convivem numa lógica legal e formal, a exemplo do Moto Táxi, que é uma forma de mobilidade que existe nas comunidades, e não é legalizado, não é formalizado e é perseguido constantemente. Mas, no ponto de vista concreto, garante a mobilidade de muitas famílias, que por exemplo, numa área de morro, não teriam acesso à ônibus com frequência ou não tenha acesso, mas tem acesso a mobilidade a partir daquela modalidade. Mas, também, isso não garante o direito à mobilidade. Garante no sentido de que é uma forma de mobilidade, mas não quanto direito ou políticas públicas, mas muito pela lógica de “se eu pagar um moto-táxi eu vou ter acesso à mobilidade”, sendo essa uma característica do transporte coletivo, que muitas vezes não é público (é um misto de público e privado), e isso está diretamente ligada ao que era na década de 90, por exemplo, o caso das kombis na cidade do Recife. Isso são as formas que a população e grupos sociais de baixa renda tentam enfrentar o problema crônico da mobilidade no Recife, que por sinal, é um dos trânsitos mais lentos do mundo, ultrapassando São Paulo (que é referência de trânsito). 

 

Um fato curioso de refletir é sobre o porque se investe mais de meio bilhão de reais na Via Mangue, onde não passa um ônibus, e no fim das contas você não tem um modelo de investimento em outros modais como metrô, ônibus, teleférico… 

 

EDUARDA: QUAL A IMPORTÂNCIA DE INVESTIR NESSES MEIOS?

 

RUDRIGO: Discutir mobilidade passa por uma discussão sobre a forma de ocupação do território. A nossa necessidade de mobilidade ela é pautada pela forma em que a gente acessa os meios de subsistência na cidade. Eu, por exemplo, tenho uma demanda de mobilidade na cidade todos os dias porque eu saio da minha casa e vou até o meu trabalho. Apesar de Recife ser uma das menores capitais do Brasil, tem uma oferta de serviço e de meios que é muito concentrada e muito dispersa. Por exemplo: a gente tem uma lógica de cidade setorizada muitas vezes… O trabalho se concentra no centro, a moradia não se concentra no centro apesar de uma grande oferta de um grande “estoque” imobiliário na área central do Recife, já que temos muitas construções na área central, mas tem também uma vacância. O MTST fez um levantamento em 2018, que apontava que só no Bairro de Santo Antônio existia 42 imóveis com cinco ou mais andares, que estão vazios os subutilizados (com estado de conservação). Nesses imóveis poderiam ser construídos 2.006 unidades habitacionais, com o valor estimado de 52 milhões de reais. Em seguida, aparecem dados de que o centro do Recife possui uma dívida de 346 milhões de reais em IPTU. Existe terra, existe recurso e existe a possibilidade de inverter um pouco da lógica, já que grande parte da população que trabalha no centro não mora lá, muitas vezes mora fora do Recife, acarretando uma demanda por mobilidade que seria enfrentada se você garantisse moradia para as pessoas. 

 

Existe um debate por mobilidade que não passa só por investimento, totalmente desproporcional do transporte individual. Existem várias escalas dentro desse debate: o processo de mobilização da cidade, o processo de organização do transporte coletivo na cidade e os investimentos em políticas públicas e especialmente na política urbana.

 

EDUARDA: DO PONTO DE VISTA DO INDIVÍDUO, COMO A CLASSE SOCIAL PODE INTERFERIR NA MOBILIDADE URBANA? 


(28’) RUDRIGO: Como o nosso desejo é mobilizado em função disso, né? Acho que a gente viveu um período interessante para pensar nisso. Desde o processo de redução do IPI pra cá, a lógica de desenvolvimento era de que o pobre tinha acesso a possibilidade de ter um carro, e isso do ponto de vista da desigualdade é um símbolo… “agora o trabalhador pode comprar um carro, assim como a classe média ou os ricos historicamente tiveram”, mas isso não condiz para uma sociedade que no fim das contas é sustentável, racional… O metrô é um modal que de certa forma simboliza uma ideia de racionalidade urbana muito interessante. Se você for pensar que o metrô em SP conecta a cidade toda, e como conseguimos pensar que seria possível se movimentar debaixo da terra, como a gente legitimou que deveria investir em um meio de transporte que funcionaria debaixo da terra. O que nossa perspectiva de mobilidade é mobilizada pelo desejo individual?

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